“O primeiro casal gay de Goiânia a registrar sua união depois da decisão de reconhecimento do STF (Supremo Tribunal Federal) perdeu o direito de permanecer em união estável. O juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública Municipal e Registros Públicos de Goiânia, Jeronymo Pedro Villas Boas, cancelou de ofício (ou seja, sem nenhum pedido) o contrato.
O magistrado contestou a decisão do Supremo, e disse que a Corte não tem competência para alterar normas da Constituição Federal. O artigo 226 traz em seu texto que, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão”. Esta seria a norma que o juiz entendeu inviolável.
A decisão que cancelou o contrato também determinou a comunicação a todos os Cartórios de Registro de Títulos e Documentos e do Registro Civil da comarca de Goiânia para que nenhum deles faça a escrituração de declaração de união estável entre pessoas do mesmo sexo. Segundo a ordem, só terá validade o ato entre pessoas do mesmo sexo se houver decisão judicial prévia”
Essa matéria serve para explicarmos a diferença entre os sistemas jurídicos chamados jurisprudenciais ou comuns (common law, em inglês) - que é o usado na maior parte dos países colonizados pela Inglaterra, como os EUA, Austrália, Irlanda, índia, e Quênia (mas, por incrível que pareça, não na Escócia, que faz parte do Reino Unido) – e o sistema codificado ou civil (civil law, em inglês), que é o nosso, e também usado na maior parte dos países da América Latina, da Europa Continental, China, Turquia, Rússia etc.
A razão pela qual o juiz da matéria acima resolveu proferir uma decisão contrária à do STF, que é o órgão máximo do judiciário, é porque ele, na maior parte das vezes, pode fazer isso.
No sistema jurisprudencial – e essa é a diferença essencial entre ele e o nosso sistema – a decisão de uma corte superior vincula as cortes inferiores e, às vezes, a si mesma. Em bom português, isso quer dizer que a decisão daquela corte se torna 'lei' para toda a sociedade. Não pode ser contrariada em casos similares futuros. Apenas quando uma corte superior dá outra interpretação ou o legislativo resolve fazer uma lei a respeito é que a decisão daquela corte deixa de ser lei. É por isso que todas as vezes que você assiste filme americano envolvendo a justiça, os advogados estão sempre citando casos. É porque aqueles casos passados são as 'leis' que o juiz terá de obedecer no caso presente.
Já no sistema codificado (o nosso), a maior parte das leis são feitas antes do fato ocorrer, ou seja, são redigidas levando-se em conta não um problema em concreto, mas uma formulação teórica. Uma vez que a lei tenha sido feita pelo legislativo, cabe ao judiciário apenas aplicá-la. O judiciário não faz normas. E como cabe a ele apenas aplicá-la, qualquer magistrado pode interpretá-la como achar melhor. Eles são livres em sua interpretação. Logo, e é essa é sua característica fundamental, uma corte superior não vincula as inferiores.
Isso significa que a maior parte das decisões tomadas pelo STF vinculam (obrigam) apenas as partes envolvidas no(s) processo(s) que ele julgou, e não o resto da sociedade.
Mas isso quer dizer que os magistrados no Brasil podem interpretar como bem entenderem?
Mais ou menos. Existem dois mecanismos de controle. Um legal e o outro, bem, digamos, humano.
O legal vem da própria Constituição, que permite ao STF fazer com que alguns de seus julgamentos vinculem a todos. É o caso das famosas Adins e ADIs, das quais já falamos aqui.
O outro, que é na prática tão ou mais importante como fator de controle dos magistrados, está na própria carreira do magistrado. Magistrados são seres humanos. Têm egos, ambições e sonhos, inclusive o de progredirem, de serem promovidos dentro de suas carreiras. Poucos magistrados desejam chegar ao fim de suas carreiras e ainda serem juízes de primeira entrância (o primeiro passo na longa carreira de um magistrado). E para progredirem eles precisam demonstrar que conhecem a melhor forma de interpretar a lei. Óbvio que quando insistem em interpretar a lei de forma diferente da interpretação dada pelos órgãos acima dele, que são responsáveis por suas promoções, bem, suas chances de progredirem baseado na qualidade de suas decisões e no seu conhecimento da lei ficam extremamente restrita. No caso da matéria acima, é óbvio que a decisão do magistrado será revertida por alguma instância superior, e que as chances do juiz se promovido rapidamente ficam, no mínimo, reduzidas. Mas os efeitos de sua decisão, até ser revertida por uma corte superior, restringem a vida daqueles afetados.
PS: Ao contrário do que muita gente acredita, e que o nome 'codificado' leva à crer, a diferença entre os dois sistemas não é que um possui leis escritas e o outro não. Óbvio que EUA, Inglaterra e Índia possuem leis escritas feitas por seus legislativos.